quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Enlevo d'alma

A solidão é o espaço encantado, onde o espírito se derrama livremente...

Passa-se nela longas horas em uma doce embriaguez de reflexões, engolfado em místico e jamais interrompido silêncio... nulificam-se aí os sentidos com a mais completa indiferença a tudo que os rodeia... não se vê o que existe a dois palmos dos olhos... não se ouve a avezinha que modula na árvore mais próxima... não se sente a aurora que principia a romper, nem as trevas que começam a difundir-se; está levantada uma barreira entre o mundo e a alma; e, mais que nunca dona de si própria, ela rumina o passado... reflete sobre o presente... e sonha de ordinário com o futuro...

Oh!... então é um milagre, quando os lábios se sorriem, a não ser com amarga ironia!... porque também, para dizer a verdade, o homem tem na sua vida tão poucas coisas de que sorrir-se alegremente!...

Então se está quase sempre ou sempre sob o domínio da melancolia.

Mas esse estado não se parece nada com o desgosto de si mesmo, que, como o castigo de Deus, enche de fel o coração do mau.

Esse estado é o que convém à imaginação brilhante, que se sente enjoada e se vinga do mundo de gelo e de cifras, indo, livre dos grilhões da sociedade, derreter-se em arabescos de fogo...

É o fecundo sonhar do poeta...

É não dormir, e não velar; é um viver entre a vigília e o sono, que se assemelha à hora do crepúsculo, que não é dia nem noite.

A natureza parece haver criado aqui e ali sítios moldados a esse inefável gozo de ilusões, como altares erguidos ao espírito no templo da solidão.

E os homens nisso, como em tudo mais, têm pretendido com a arte arremedar as obras do Senhor.



Joaquim Manuel de Macedo

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